20 de ago. de 2013

Análise do conto "Capítulo dos Chapéus" de Machado de Assis

Em “Capítulo dos Chapéus”, Machado volta a abordar a relação homem-meio sobre o prisma do temperamento. Neste conto, temos como protagonista Mariana, um exemplo de pusilanimidade, de desconhecimento de si, de falta de autonomia, de fraqueza da vontade, que muda conforme mudam as circunstâncias. Mesmo o seu “gosto estético” é tomado de “empréstimo”. 
O conto inicia-se com Mariana pedindo ao seu marido, Conrado, para que ele troque de chapéu. Conrado surpreende-se com o pedido da mulher:

 “Conhecia a mulher, de ordinário, uma criatura passiva, meiga, de uma plasticidade de encomenda, capaz de usar com a mesma divina indiferença tanto um diadema régio como uma touca.” (“O Capítulo dos Chapéus”. Obra completa, 2004, vol. 2, p.402). 

Mas o narrador logo esclarece a razão do desgosto de Mariana pelo chapéu de seu marido: na noite anterior, o pai dela confessara-lhe, em segredo, que achava abominável o chapéu de seu genro. De todo modo, Conrado, sem conseguir compreender o porquê da repentina antipatia pelo seu chapéu, resolve dar a Mariana uma explicação sobre a dificuldade de trocá-lo: 

 - Olhe, iáiá, tenho uma razão filosófica para não fazer o que você me pede. Nunca lhe disse isto; mas já agora confio-lhe tudo. Mariana mordia o lábio, sem dizer mais nada; pegou de uma faca, e entrou a bater com ela devagarinho para fazer alguma coisa; mas, nem isso mesmo consentiu o marido, que lhe tirou a faca delicadamente, e continuou: - A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce uma ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão da liberdade existe arraigada nos compradores, e é mantida pelos chapeleiros que, ao verem um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, e sair sem comprar nenhum, imaginam que ele está procurando livremente uma combinação elegante. O princípio metafísico é este: – o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab eterno; ninguém o pode trocar sem mutilação. É uma questão profunda que nunca ocorreu a ninguém. [...] Quem sabe? pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu… (Ibid., p.403). 

  Se continuarmos a leitura do conto, veremos o modo como Machado trabalha a dinâmica da frágil consciência de Mariana, sujeita a um “determinismo obscuro”. Isso já pode ser observado, no fragmento acima, em um pequeno ato de Mariana, que, após receber a resposta do marido sobre “suas razões metafísicas”, passa a bater involuntariamente a faca na mesa, “para fazer alguma coisa”. Acabada a discussão, Mariana, frustrada em seu pedido, passa a sentir ódio do chapéu de seu Marido, questionando-se sobre como pôde suportá-lo por tantos anos. É neste estado de espírito que ela vai à casa de sua amiga Sofia, “com o fim de espairecer, não de lhe contar nada” (Ibid., p.404). Sofia tem o temperamento oposto ao de Mariana: dominadora, namoradeira e voluntariosa, “muito senhora de si”. Embora não fosse sua intenção inicial, Mariana não resiste e desabafa o caso do chapéu com Sofia, que, logo em seguida, convence Mariana a dar um passeio com ela: Um certo demônio soprava nela as fúrias da vingança. Demais, a amiga tinha o dom de fascinar, virtude de Bonaparte, e não lhe deu tempo de refletir. Pois sim, iria, estava cansada de viver cativa. Também queria gozar um pouco, etc.,etc… (Ibid.,, p.405.) “Etc, etc”. 
Com que sutileza o narrador revela ao leitor a superficialidade das razões de Mariana! Estaria a mulher do Conrado cansada de viver cativa? Ou seria, no fundo, apenas o sopro passageiro do demônio da vingança? Em todo caso “parece que não deu tempo de refletir”. Ora, “De refletir o quê?”. A continuação do conto responde a pergunta. Se Mariana refletisse, ela talvez se desse conta que passear pela Rua do Ouvidor com a amiga namoradeira era uma atitude oposta ao seu temperamento: o “de uma criatura passiva e meiga”. Ora, veja-se a reação de Mariana durante o passeio: “A uniformidade e a placidez, que eram o fundo de seu caráter e sua vida, receberam daquela agitação os repelões do costume. Ela mal podia andar por entre os grupos, menos ainda sabia onde fixar os olhos, tal era a confusão das gentes, tal era a variedade das lojas”. (Ibid., p.406.) 
Ao final do passeio, não ocorre vingança alguma, muito pelo contrário: Mariana se aborrece com tudo aquilo e volta ao lar. Com grande habilidade, o narrador vai mostrando como, gradativamente, a consciência de Mariana vai modificando a opinião sobre o chapéu de seu marido: “Achou que, bem pesadas as coisas, a principal culpa era dela. Que diabo de teima por um chapéu que o marido usava há tantos anos? Também o pai era exigente demais…”. (Ibid., p.410.) 
 Ao fim do conto, o marido chega em casa, e, para a surpresa de Mariana, está com um chapéu novo. A moça, ao contrário daquilo que lhe pedira de manhã, pede para que ele tire o chapéu e coloque o antigo em seu lugar. Onde está a liberdade? Qual a autonomia de Mariana? Mesmo as vontades e gostos dela são tomados de empréstimo: desgosta do chapéu de seu marido por causa da opinião do pai; e resolve passear pela Rua do Ouvidor sob a influência de Sofia. Esta sim é resoluta e decidida, “muito senhora de si”, “qualidade” essa que Mariana tenta inclusive como que tomar para si: “A rebelião de Eva evocava nela os clarins; e o contato da amiga dava um prurido de independência e vontade.” (Ibid., p.404.) 
  Em outra passagem deste mesmo conto, podemos observar mais uma vez a diferença de temperamento entre as duas mulheres, quando Mariana tenta impor sua vontade à Sofia: “Mariana teimou ainda mais um pouco; mas teimar contra Sofia, – a pomba discutindo com o gavião, – era realmente insensatez”. (Ibid., p.408.) “Pomba” e “Gavião” fazem sentir a presença deste algo de natural no ser humano: o temperamento, idéia essa que acompanha Machado durante várias de suas obras. Bentinho de Dom Casmurro é quase que um fantoche nas mãos das outras personagens do romance. Sua mãe o usa para pagar sua promessa; Capitu, para ascensão social por meio do matrimônio, (uma das únicas formas de uma mulher obter ascensão social naquele tempo); e o agregado José Dias, para manter sua posição de agregado. Capitu, por outro lado, é quase o oposto de Bentinho, usa de todos os artifícios para conseguir seu objetivo, o matrimônio.
 O jogo de temperamentos e de caracteres encontra-se também no romance Quincas Borba (1891), cujo protagonista, Rubião, é manipulado por Palha, Sofia, e mais uma corja de parasitas. 

Publicado originalmente em: Análise: Capítulo dos Chapéus, de Machado de Assis | Vestibular no Pará | você passa primeiro aqui Under Creative Commons License: Attribution

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